domingo, 5 de junho de 2011

Vitória, Manama e porque eu acho que ir ao Bahrein é vergonhoso para a F-1

A semana que passou foi quente. Não na perspectiva climática, mas porque aconteceu muita, muita coisa.

Não sei se muitos dos leitores me seguem no Twitter. Não sei se eles passam muito tempo ligados nessas redes sociais, mas de quinta-feira para cá minha participação no microblog e no Facebook praticamente se resumiu a comentários sobre os protestos que entraram para o centro da discussão sobre transporte público e direitos civis aqui em Vitória, a cidade em que vivo. Vou me permitir falar sobre isso, para depois apenas citar a Fórmula-1 no final do texto.

Em linhas gerais, os estudantes querem discutir o atual preço da passagem dos ônibus e grande parte deles é a favor do passe-livre. Os passageiros pagam R$ 2,30 para utilizar o sistema metropolitano, que integra seis cidades. O governo responde dizendo que a passagem em Vitória está longe de ser uma das mais caras entre as de capitais de estado e lembra que já subsidia as passagens e que sem esse apoio elas seriam mais caras. Argumenta ainda que todos os estudantes são beneficiados com a meia-tarifa e parte deles já é beneficiada com a gratuidade para se locomover de casa para a escola.



Muito pessoalmente, para desespero de alguns colegas de faculdade, sou contra essa discussão do modo como ela é feita. Talvez por gostar de ônibus (é estranho, eu sei, mas clique aqui para descobrir até que ponto esse escriba é fascinado por essas caixas de carregar gente) percebo que a discussão sobre gratuidade para estudantes no transporte público está fora de lugar. Primeiro porque não concordo com essa tendência de achar que transporte tem que ser de graça porque é um direito. Comer também é um direito, penso eu, e nem por isso comida é de graça. E o preço da carne, do leite, do feijão e do pão subiu estratosfericamente nos últimos meses, e nenhum estudante foi fechar o trânsito da cidade para protestar. Ninguém foi pedir esclarecimentos para o dono da padaria, do supermercado, para o fazendeiro que cria vacas ou que planta feijão. Talvez porque a maioria de nós, estudantes, não vá muito ao supermercado.



Além disso, abrir as catracas para os estudantes vai penalizar os trabalhadores. As empresas terão de ser compensadas cobrando mais da parcela que pagaria a passagem caso os estudantes de fato conseguissem a tarifa livre. E aí, a passagem que hoje é de R$ 2,30, iria para quanto? Não discordo dos meus colegas, acho sim que gastar quase cinco reais diariamente para ir e voltar da escola ou do trabalho onera demais o bolso justamente da parcela mais carente da população, a que precisa pegar ônibus. Mas estou falando do mundo real, sem utopias de fim da propriedade privada, e acho que deve existir uma política pública/social para contornar esse problema e que a discussão sobre a qualidade do transporte público deve se dar de forma contínua, não só quando a passagem aumenta. Para quem adora falar que “paz sem voz não é paz, é medo”, fica a dica: discussão ideologizada e pontual não é discussão, é gritaria sem sentido.

Desde que a passagem aumentou, em janeiro, os estudantes fizeram diversos protestos. E há alguns meses estava prometida uma grande manifestação com o slogan “se a tarifa não baixar, Vitória vai parar”. O dia 2 de junho foi escolhido para ser o dia D, e de fato foi. Um grupo de centenas de estudantes interrompeu completamente o tráfego de veículos nas avenidas Jerônimo Monteiro e Getúlio Vargas, em frente ao Palácio Anchieta, sede do governo do estado do Espírito Santo, durante mais de seis horas na última quinta-feira. Queriam conversar sobre alternativas para a problemática do alto custo da passagem com alguém do alto escalão da gestão estadual. O governador Renato Casagrande, do PSB, não estava em Vitória, viajara para Brasília. O vice, Givaldo Vieira, do PT, teve de lidar com a crise: o coração da capital do estado parado durante toda a manhã por estudantes que exigiam um representante para discutir um assunto bastante pertinente para a sociedade.

Pausa.

Adendo 1: governador e vice têm seu passado político ligado aos movimentos sociais. Casagrande tem origem no movimento estudantil e no PCdoB. Givaldo vem das CEBs, Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, e de outros movimentos comunitários;

Adendo 2: no mês passado o governo do estado resolveu a desapropriação de um terreno público atirando e jogando bombas de gás sobre a população desarmada. O evento se deu na cidade de Aracruz, a 75km de Vitória. Cerca de 300 famílias foram expulsas de uma área destinada à construção de casas populares sob tiros do BME, o Batalhão de Missões Especiais da Polícia Militar capixaba. Uma mulher morreu depois da ação.

Retornando à quinta-feira, dia 2, por volta da uma da tarde, o governador em exercício, Givaldo Vieira, deve ter considerado que a situação chegara ao limite. A capital do estado, afinal, não podia passar o dia inteiro parada pelo protesto. Ao invés de convocar uma reunião ou chamar os manifestantes para o diálogo, a solução encontrada pelo petista (ou por Casagrande, que é quem responde pelo executivo, em última instância) foi chamar o BME para agir novamente com violência contra uma manifestação pacífica. O Centro de Vitória foi tomado por tiros de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Os estudantres subiram a escadaria do palácio e lá do alto revidaram com pedras. A manifestação se dissolveu, mas não terminou.



No final da tarde, na outra ponta da cidade, os estudantes organizaram novo protesto. Já não era só uma questão de discutir preço de passagem, mas de anunciar a revolta contra o modo que o atual governo adota para resolver suas questões (na falta de um termo melhor) sociais. A atuação da polícia em Aracruz ainda estava entalada na garganta e uma reação novamente desproporcional foi tomada contra manifestantes desarmados e exercendo seu pleno direito de protestar. Os estudantes saíram da universidade federal e pararam outra via importante de Vitória, a avenida Fernando Ferrari, em frente à UFES.

E o inimaginável aconteceu. O governo teoricamente de esquerda, que se elegeu explorando o mote de atenção e diálogo com os movimentos sociais, repreendeu a manifestação com a mesma truculência de horas antes. BME acionado, tiros de bala de borracha, bombas de gás e sprays de pimenta sendo utilizados até mesmo sobre pessoas que não participavam do protesto, apenas passavam pelas imediações da UFES. Os estudantes correram para dentro da universidade. Como se trata de um terreno da União, a PM só pode acessá-lo com a devida autorização. Ignorando o bom senso, o BME atirou e lançou bombas contra a instituição de ensino.



Ainda na noite de quinta-feira foram registrados mais dois confrontos entre a tropa de choque da polícia e os estudantes em outros pontos de Vitória. Vinte e sete pessoas, entre estudantes e jornalistas, foram presas na quinta-feira.



De quinta para sexta as redes sociais ferveram. Na manhã do dia 3, o assunto serpenteava por todos os corredores da universidade. A internet foi o meio utilizado para organizar um novo protesto. Dessa vez não apenas para pedir o indefectível passe-livre, mas para dizer não ao destempero policial e a falta de sensibilidade política do governo estadual. No Brasil, parece papo de bicho-grilo, maconheiro, esquerdista aposentado, mas as pessoas têm sim o direito de protestar sem serem acossadas e reprimidas de forma covarde por quem deveria, em tese, protegê-las. E o exagero da polícia na quinta gerou esse sentimento de revolta em uma parcela significativa não só da comunidade acadêmica, mas de boa parte da sociedade. Os manifestantes que eram centenas na quinta tornaram-se milhares (quatro mil nas estimativas da PM) na sexta, dessa vez com a participação e o apoio desse blogueiro. Saímos em marcha pela cidade, num protesto pacífico, quase desafiando governo e PM a dispararem contra a multidão que apenas gritava palavras de ordem. O BME chegou a ser convocado e se deslocou para o pedágio da Terceira Ponte - destino da marcha - ficando de prontidão. Mas antes da nossa chegada, o batalhão foi chamado de volta para o quartel.

A comemoração foi tremenda quando chegamos aos pés da ponte depois de 3 km e mais de duas horas de caminhada. Foi impossível não interpretar o recuo da PM como uma vitória. Não gosto de chavões, mas foi sim uma vitória da democracia, do livre direito de se manifestar. Às favas o passe-livre, fiquei com orgulho da minha geração, de pessoas da minha idade, que sempre conviveram com a pecha de “despolitizados” frente a quarentões e cinquentões que se gabavam de ter lutado contra a ditadura. É como se devêssemos favores pela liberdade de hoje. Com as manifestações desse início de junho, mostramos que também somos capazes. Parafraseando Rodrigo Rossoni, um dos coordenadores da ONG Transparência Capixaba, lanço a pergunta: com causas melhores do que o passe-livre quem disse que não podemos (e que não queremos) mudar o mundo?

E o que a Fórmula-1 tem a ver com tudo isso, afinal?

Se o leitor me acompanhou até aqui, parabéns, muitos devem ter ficado pelo caminho. Agora vamos falar de F-1.

Na sexta-feira a FIA anunciou que o GP do Bahrein - inicialmente marcado para abrir o mundial em março e adiado depois que o país mergulhou em protestos contra a monarquia local - será realizado no dia 30 de outubro. O retorno da categoria ao pequeno reino tem claros objetivos financeiros: a categoria - leia-se Bernie Ecclestone, gerente comercial e dono da maior parte dos lucros da F-1 - volta ao Bahrein para não perder as dezenas de milhões de dólares que a família real barenita paga para promover a corrida na pequena ilha. O discurso da FIA tenta disfarçar, fala que a decisão “reflete o espírito de reconciliação no Bahrein”, mas não se sabe que reconciliação é essa. O Bahrein continua em convulsão política, apesar de a mídia ocidental ignorar as manifestações no país árabe, tal como acontece com a Líbia do gagá Khadafi. Os protestos contra a família real barenita, que governa o país aos moldes das monarquias absolutistas europeias de 500 anos atrás, seguem e na sexta-feira a polícia abriu fogo contra manifestantes que pediam a queda da família real na capital, Manama.



A Fórmula-1 é uma categoria esportiva mundialmente conhecida. Tem suas responsabilidades. As pessoas continuam insatisfeitas em Manama, querendo mudanças, saindo às ruas, dizendo não contra o que não concordam. Estão sendo reprimidas, mas há mais de três meses fazem tudo isso sem desistir. É claro que é preciso observar as proporções entre os levantes daqui de Vitória e os do Bahrein: aqui, uma questão local, lá uma manifestação nacional. Nos protestos dessa semana por aqui ficou claro que a reação da sociedade civil na sexta só foi tão contundente por causa do destempero do governo na quinta. A violência sem sentido gera indignação e mobiliza mais pessoas, além de dar combustível e motivação para resistência da parte de quem protesta. Eu e vários outros, que não concordam com o motivo central do protesto em si, engordamos as fileiras na sexta simplesmente para dizer não à covardia. Isso aconteceu aqui, isso está acontecendo no Bahrein desde fevereiro.

Não há indícios de que a insatisfação vá cessar no Bahrein. Posando ao lado da monarquia, alvo do povo, a Fórmula-1 estará prestando um enorme desserviço a si mesma e assumindo riscos. Deus sabe o que a visibilidade de um evento internacional pode motivar entre os manifestantes barenitas. Indo ao Bahrein, a F-1 estará colocando sua história, seu prestígio e seu significado ao lado de tudo o que os barenitas querem derrubar. Ir ao Bahrein, para a F-1, é se brutalizar, é se colocar ao lado de um regime que atira mais do que balas de borracha para dispersar opositores. E depois de tudo o que eu vi e vivi de perto nessa semana, é ainda mais impossível concordar em ver a F-1 endossar ações desse gênero.

4 comentários:

Ron Groo disse...

Bingo brou... É um direito a preços justo. Gratuidade é utopia.

E quanto ao Bahrein... Não me surpreendeu a decisão. Money talks.

choqueano disse...

Então a manifestaçaõ dessa forma é justa?. Quando várias pessoas usam de força física para bloquear as vias ja engarrafadas de vitória?. E a policia que fez uso de munições e armas não letais para não ter um confronto pior é truculenta?. me ajuda ai ô!!!!.Gás lacrimogeneo é pra isso mesmo e os tiros de elastômero( borracha)são respostas as pedradas e garrafadas. O negócio é que tem um monte de interessados neste tipo de confusão simplesmente pra alavancar campanhas politicas!!!!

Fábio Andrade disse...

Não discuto a falta de sensibilidade dos estudantes ao fechar vias públicas, entendo perfeitamente quem discorda. Agora dizer que gás lacrimogêneo e balas de borracha são RESPOSTA a pedradas é versão de que tem a realidade construída somente pelo que os meios de comunicação dizem. As pedradas dos estudantes só vieram depois que o BME iniciou o ataque que, sim, foi truculento. Que outro nome dar a uma polícia que avança sobre manifestantes desarmados?

Anderson Nascimento disse...

Guardada as proporções, essa ação covarde dos policiais lembrou-me do dia que ficou marcado como "Domingo Sangrento", onde soldados britânicos atiraram em manifestantes desarmados e que causou a morte de várias pessoas. Polícia é feita pra proteger cidadãos e organizar a civilização, não para colocar mais caos e medo ainda.